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À vontade em nossos corpos - o escaneamento corporal


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A prática de Mindfulness pode nos libertar da prisão da dor física? Como a meditação pode ajudar quando a medicina não é suficiente? Jon Kabat-Zinn, Ph.D., professor emérito de medicina na Escola de Medicina na Universidade de Massachusetts, responde a estas questões como um praticante de longa data de meditação budista e hatha yoga, e como pioneiro no uso de mindfulness para tratar dores e doenças crônicas. Mais de 13.000 pessoas visitaram a internacionalmente renomada Clinica de Redução de Estresse que Kabat-Zinn estabeleceu em 1979 no Centro Médico UMass, e o programa de oito semanas descrito no best-seller de Kabat-Zinn “Full Catastrophe Living” (A Completa Catástrofe de Viver, em tradução livre) - agora também é oferecido em cerca de duzentos centros médicos em todo o mundo.

O editor da Revista Tricycle, Joan Duncan Oliver falou com Kabat-Zinn em Setembro de 2002.

Vamos começar com uma pergunta básica: o que é a dor?

A dor física é a resposta do corpo do sistema nervoso a uma enorme gama de estímulos que são percebidos como desagradáveis, prejudiciais ou perigosos. Há realmente três dimensões à dor: o componente físico ou sensorial; componente emocional ou afetivo, como nós sentimos sobre a sensação; e o componente cognitivo, o significado que atribuímos a nossa dor.

Digamos que você tem uma dor nas costas. Você não pode levantar os seus filhos; entrar e sair do carro é difícil; você não pode sentar-se em meditação. Talvez você não possa nem mesmo trabalhar. Esse é o componente físico. Mas você está tendo que deixar muitas coisas de lado, e você vai ter sentimentos sobre isso — raiva, provavelmente — e você é suscetível à depressão. Essa é a resposta emocional. E então você tem pensamentos sobre a dor — questões sobre o que a causou, histórias negativas sobre o que vai acontecer. Essas expectativas, projeções e medos compõem o estresse da dor, diminuindo a sua qualidade de vida.

Existe uma forma de trabalhar com tudo isso, baseada nas práticas de meditação, que pode te libertar, em grande escala, da experiência da dor. Quer você possa reduzir o nível da dor sensorial ou não, as contribuições afetivas e cognitivas à dor — que a fazem muito pior — geralmente podem ser diminuídas. E a partir disso, muito frequentemente, o componente sensorial da dor muda também.

Você quer dizer que uma vez que você mudou sua relação com a dor, o desconforto físico pode diminuir?

Esse é o ponto chave: você muda a sua relação com a dor ao abrir-se a ela e prestando atenção nela. Você coloca um capacho de boas vindas. Não porque você é masoquista, mas porque a dor está ali. Então você precisa entender a natureza dessa experiência e as possibilidades a partir dela, como os médicos dizem, aprender a viver com ela, ou, como os budistas poderiam dizer, “libertação do sofrimento.” Se você faz a distinção de dor e sofrimento, mudar é possível. Como o ditado diz: “A dor é inevitável, o sofrimento é opcional.”

Foram feitos estudos procurando saber como a mente processa uma dor aguda num nível sensorial. Sujeitos foram distribuídos aleatoriamente em dois grupos, e depois realizaram o teste de pressão a frio, onde um torniquete é colocado ao redor do seu bíceps, e você coloca seu braço na água gelada. Não há mais fluxo de sangue, então seu braço fica muito dolorido muito rápido. Eles medem quanto tempo você consegue ficar com seu braço na água relacionando com a sua estratégia de atenção, como prestar atenção às sensações e realmente ir na direção delas e estar com ela da forma mais sem críticas que você puder — em outras palavras, uma estratégia mindfulness — ou uma estratégia de distração, onde você simplesmente tenta pensar em outras coisas e se desconectar da dor. Foi descoberto que nos primeiros minutos em que se tem o braço na água gelada, distração funciona melhor do que mindfulness: você está menos consciente do desconforto porque você está contando a si mesmo uma história, ou relembrando algo, ou fantasiando a respeito de algo. Mas depois que o braço está na água gelada por um tempo, mindfulness se torna uma estratégia muito mais poderosa do que a distração para tolerar a dor. Enquanto a distração sozinha, quando para de funcionar, você não tem nada.

O programa de Redução de Estresse Mindfulness usa o escaneamento corporal tanto quanto a meditação sentada para lidar com a dor. Você pode explicar como funciona o escaneamento corporal?

O escaneamento corporal é uma variação de uma prática tradicional birmanesa chamada “varredura” que vem da Escola U Ba Khin. onde S. N. Goenka ministra seu retiro Vipassana de dez dias. O método tradicional envolve se conectar com a sensação a partir de uma estreita faixa horizontal que vagarosamente perpassa o corpo inteiro como se você estivesse realizando em si mesmo uma tomografia. Essa prática é análoga de certa forma, como a maneira que certos metais, como o zinco, são purificados em uma fornalha circular. Eu pensei que seria difícil para pessoas com dores crônicas permanecerem sentadas por quarenta e cinco minutos, então eu modifiquei a prática. Ela é realizada deitada começando a partir dos dedos dos pés e subindo para as diversas regiões do corpo.

Esta prática é uma maneira de se desligar da mente e desenvolver intimidade com o corpo. O desafio é, a sua capacidade de sentir seus dedos do seu pé esquerdo sem movê-los. Você se conecta com os dedos, e gradualmente leva sua atenção para a planta do pé e para o calcanhar e sente o contato com o chão. Em seguida você vai para o tornozelo e vagarosamente sobe sua atenção pela perna até a pélvis. Depois você segue para os dedos do pé direito e sobe pela perna direita. Bem devagar, você vai para o tronco, passando pela lombar e pelo abdômen, em seguida pelas costas e peito, e depois os ombros. Depois você passa pelo pescoço e garganta, o rosto e a parte de trás da cabeça, e em seguida chega ao topo de sua cabeça.

E durante todo esse percurso, você está em contato com sua respiração. Acontece de pessoas sentirem sua respiração, o ar entrando e saindo, na região a qual elas estão direcionando sua atenção, então estamos falando de um tipo de consciência dupla. Quando você está fazendo o caminho de subida pelo corpo, você está aprendendo como focar em regiões específicas, se desvencilhar e seguir. É como cultivar concentração e mindfulness simultaneamente, porque existe um fluxo contínuo. Você não está ficando somente em um objeto de atenção.

O escaneamento corporal funciona como uma prática de relaxamento?

O escaneamento corporal é uma prática meditativa, não um exercício de relaxamento. Relaxamento é feito com um objetivo em mente. Meditação é sobre não-esforço e vazio. Se você se pega pensando, “estou fazendo essa meditação para sanar minha dor”, você está indo com a motivação equivocada. Meditação não “funciona” ou “não funciona”; é sobre estar com as coisas como elas são.

E se sua dor for tão forte que é difícil para você se concentrar em qualquer outra coisa?

Você tem algumas possibilidades de escolha. Vamos dizer que você tem uma dor lombar. Você pode dizer, “vou tentar focar nos meus dedos, mesmo na presença da minha dor nas costas. A dor está sempre lá; eu vou chegar nela mais cedo ou mais tarde. Porque eu não vejo se consigo realmente aprender a focar minha atenção onde está sendo pedido que eu foque”. Frequentemente, quando você faz isso, a sensação de dor nas costas diminui.

Mas se a dor for muita, você pode ir para a região onde a dor está e deixar a respiração partir dali. Inspirar e sentir a respiração, ou através da sua imaginação, você pode visualizar sua respiração se movendo para baixo na parte inferior das costas. Em seguida, na expiração, enquanto deixando o ar sair, tentar permitir a mente se desapegar. Você não está tentando se desconectar das sensações que vem da parte inferior das suas costas — somente experienciando a plenitude do que pode acontecer se você desapegar. Então no próximo momento, as sensações e os sentimentos e os pensamentos podem todos voltar, e você tem a próxima inspiração para lidar, então, é uma prática.

Você desenvolve uma atitude de observador em relação a dor?

Basicamente, você está intencionalmente sendo testemunha da dor ao invés de se distanciar dela; nós não estamos ensinando mindfulness como uma prática dualista. No entanto, existe a sensação de perceber a dor e existe observar a dor. É importante entender isso como um passo intermediário para a libertação final. Isso significa que eu posso repousar em consciência, e perguntar a mim mesmo, “Minha consciência está com dor neste momento?” E a resposta invariavelmente é: “Como eu a percebo neste momento, a consciência da dor não está com dor.” Quando você percebe que você pode estar tranquilo nesta consciência, a dor pode seguir intensa, mas você está agora cultivando equanimidade e uma compreensão clara. Você está vendo a dor pelo que ela é, uma sensação. Há um saber de que ela é não agradável. Mas a interpretação de que a dor está me matando ou acabando com a minha vida e todas as emoções e histórias que vem com isso, são vistas como o que elas são. E nessa visão, elas frequentemente se estabilizam em suspensão.

O que você diz para pessoas que dizem, “Minha prática não está funcionando: eu continuo sentindo dor”?

Quando você pensa que sua prática deveria estar funcionando, aí você já saiu da sua prática e caiu em expectativas de que a prática vai alcançar algum tipo de resultado desejado previamente. Essa necessidade de se livrar é a sua própria forma de ignorância, e nós precisamos olhar para nossos discursos próprios. Um objetivo de atenção válido é se perguntar: “Quem está em sofrimento?”,” Quem está sentindo dor?”. Nós podemos perguntar isso, mas ao invés de acharmos uma resposta, nós podemos entrar em um não-saber e experienciar apenas estar consciente.

Não que “simplesmente estar consciente” seja fácil. Quando a dor surge, temos o mesmo desafio de quando estamos despertos para a respiração. Essa é uma razão para praticar quando você não estiver com muita dor — cultivar uma prática sólida para que possamos confiar nela quando for extremamente difícil praticar.

Você parece estar dizendo que a dor é como o resto da vida, só que mais intensa.

Se você prestar atenção aos pequenos episódios de dor na sua vida, você pode aprender como lidar com episódios maiores porque você aprende sobre: annica, não-eu; anatta, impermanência; e dukkha, sofrimento. A orientação na meditação não é sobre a fixação da dor ou torná-la melhor. É sobre olhar profundamente, na natureza da dor — fazendo uso disso de certas formas que podem nos permitir crescer. Neste crescimento, coisas vão mudar, e nós temos o potencial de fazer escolhas que vão nos mover em direção a uma maior sabedoria e compaixão, incluindo a autocompaixão, e assim, para a liberdade do sofrimento.

Algumas formas de sofrimento são mais difíceis de lidar do que outras, não é mesmo? Dores lombares, por exemplo.

Dores lombares tendem a ser mais complexas porque toda vez que você se levanta ou qualquer movimento que faça, você pode estar exacerbando a inflamação ou instabilidade. Mas com o tempo, você pode transformar dramaticamente a sua relação com as suas costas. O que nós estamos falando é sobre a estrutura profunda da reabilitação.

O profundo significado de “reabilitação”, que é relacionado com a palavra “habitação”, “é aprender a viver dentro de novo.” E a raiz mais profunda da palavra é indo-europeia ghabb-e, que significa “dar e receber” como tonglen, a prática budista tibetana. Dessa forma, a reabilitação é entendida como uma troca, na qual você está disposto a se mover na direção do interior do seu ser e trabalhar no limite do que se é, com total consciência e compaixão. Se você trabalhar essa margem pacientemente, com perseverança, motivação e ternura, se você se entregar a isso em atenção plena, existe a possibilidade muito real de voltar para casa, para o seu corpo e aprender a viver dentro novamente.

Na minha visão, nós todos necessitamos aprender a viver dentro novamente. Nós não precisamos sentir dor para despertarmos para o fato de que nós podemos ser mais felizes se habitarmos a totalidade de nossas vidas.

Nota: Essa entrevista foi extraída da Revista “Tricycle”, no Inverno de 2002.

Texto Original: http://www.bemindful.org/kabatzinnart.htm

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